12 de nov. de 2006

Entre a consagração e o ridículo

Gillees Lapouge
CORRESPONDENTE - PARIS

O prêmio literário Goncourt, o mais cobiçado da França, foi concedido quase por unanimidade na semana passado ao livro de Jonathan Littell, Les Bienveillantes (editado pela Gallimard). “Matéria para explodir a literatura contemporânea”, comentou o jornal Le Figaro, com um pouco de exagero.

Jonathan Littell tinha tudo contra si. O livro é um tijolo de 900 páginas. O autor, um americano de 40 anos, totalmente desconhecido (embora seu pai seja um grande mestre de romances de espionagem americanos), que escreve em francês porque foi educado na França.

Quanto ao tema do romance, é o mais batido do último século: a Shoah (Holocausto), o extermínio de judeus pelos nazistas, tema abominável e mil vezes repisado, até a náusea, até por escritores muito importantes como o italiano Primo Levi e os franceses David Rousset e Robert Anthelme.

Quando o manuscrito foi proposto, em março deste ano, as editoras o receberam com reservas. A Gallimard mesmo assim o aceitou, mas com prudência, e fez uma tiragem modesta de 12 mil exemplares. Mas desde o lançamento do livro, em setembro, foi um turbilhão. Sem que ninguém entendesse o porquê, e antes mesmo de surgirem as resenhas e artigos, as livrarias foram assaltadas.

Na Gallimard, eles não sabiam o que fazer. Ordenaram uma nova impressão, mas o livro é imenso. Era preciso encontrar o papel. Eles recorreram então às reservas de papel previstas para o outro grande sucesso da Gallimard, Harry Potter. Finalmente, as rotativas rodaram. A editora lançou outros 170 mil exemplares no mercado. E eles sumiram.

Abriu-se a temporada dos grandes prêmios. Pânico: todos os prêmios queriam Jonathan Littell. Brigas. O Grand Prix da Academia Francesa foi o primeiro a coroar o autor. O Goncourt, que vem em seguida, ficou furioso. E contemplou, sem medo do ridículo, o mesmo Littell. As rotativas recomeçaram a roncar. Onde estamos? 300 mil exemplares? 400 mil? Nem a Gallimard sabe direito. Talvez cheguem a 600 mil, a 700 mil.

Na Feira de Frankfurt (o mercado mundial do livro), o mundo inteiro se bate por Littell. Ele é vendido para a Alemanha por US$ 567 mil, para os Estados Unidos por US$ 1 milhão, para a Itália, a Grécia, Israel, a Holanda, para toda parte. Então a Gallimard vai arrecadar uma segunda bolada com direitos estrangeiros? Nada disso, porque Littell foi negociado por um agente literário inglês, Andrew Nurnberg, e esse Nurnberg foi muito astuto: vendeu à Gallimard a exclusividade para a França, mas reservou a Littell e a si os direitos sobre todas as traduções.

MERGULHO NO INFERNO
O título, Les Bienveillantes (“as bondosas”, numa tradução livre) é uma armadilha. Littell nos mergulha num inferno. Seu livro é uma confissão longa e gélida, feita 60 anos depois dos fatos, por um alemão da Waffen SS durante a guerra, um certo Max Aue. Mas esse SS, embora tão cruel e tão peçonhento quanto todos os seus congêneres, é de um metal muito raro: é doutor em Direito, um espírito brilhante, músico, poeta, sensível à beleza das coisas, um erudito. E quando relata o horror, o crime, ele o faz num tom uniforme, quase indiferente.

E para relatá-lo, o Hauptsturmfuhrer Max Aue narra suas conversas com colegas sobre os judeus, os ingleses, seu gosto pelos poetas franceses, sua homossexualidade. Entre dois assassinatos, ele disserta sobre Stendhal, Jean Genet, o marquês de Sade. Na Rússia, fala grego com suas vítimas, cita os grandes autores latinos, Tertuliano, etc. É repulsivo.

Em Paris, se tem uma hora de folga, corre para o Louvre para ver um quadro de Philippe de Champaigne. Aue é um monstro, mas tão dotado, tão bem-criado, tão refinado! Um lógico: se aprova a “solução final”, não é por covardia ou resignação. Não, é que, logicamente, é a única saída.

Para dar boa medida, ele tem algumas outras pequenas especialidades, mas sempre muito distintas, quase se ficaria tentado a dizer, “musicais”: o incesto, por exemplo, com sua irmã. E, depois, ele se tornará parricida. Em suma, esse Waffen SS cultivado e sedutor é simplesmente a figura faustiana do mal. Repulsiva e fascinante ao mesmo tempo.

Littell terá querido defender uma tese? Sem dúvida. Só se pode pensar em análises anteriores do Shoah, em particular às brilhantes de Hannah Arendt sobre a “banalidade do mal”. É nesse sentido que o horror das matanças cometidas por Max Aue se enriquece, se assim podemos dizer, com um segundo horror, mais escondido ainda e mais perverso: esse SS coberto de sangue é um homem como todo o mundo, como vocês e eu, um “homem sem qualidade”, como poderia ter dito Robert Musil. Em outros tempos, poderia ter sido um professor universitário, ou um advogado, ou um excelente médico. Sim. Mas aí veio o Holocausto e Aue embarcou no Apocalipse, sem vacilação.

Uma tamanha epopéia do mal certamente dividiria a crítica: muitos admiram, mesmo confessando que a leitura dessa torrente de beleza e horrores é pesada, fatigante, uma verdadeira provação. Outros se declaram simplesmente refratários a essa arte. O grande historiador da Shoah, o francês Claude Lanzmann (no qual, aliás, Littell diz que se inspirou para sua documentação excelente), opina: “Essas 900 páginas torrenciais jamais alcançaram a encarnação. O livro inteiro permanece como um décor, e o fascínio de Littell pelo lixo, o pesadelo, o fantástico, a perversão sexual, contraria seu propósito, suscitando mal-estar, revolta não se sabe contra quem nem porquê.” O veredicto de Lanzmann é justo. Mas o sucesso espantoso desse livro monstro coloca uma outra questão ainda mais perturbadora: é preciso imaginar que o leitor ordinário não consegue evitar o mergulho, até a vertigem, nesse oceano mefítico, enchendo as narinas com sua exalação de morte.

Mais uma palavra: ante esse “óvni” editorial, alastraram-se rumores neste meio estreito das letras francesas que é o bairro de Saint Germain de Près. É bom que se diga que o autor, que mora em Barcelona, nada fez para contradizer de imediato esses rumores; por exemplo, nunca quis aparecer na televisão. O rumor insistente é que Jonathan Littell não é o autor do livro. Ou então que o texto do jovem americano foi “reescrito” por “um profissional.” A essa acusação, o “leitor” da Gallimard que fez publicar a obra (Richard Millet) opõe um desmentido formal: “Que fique claro”, diz Millet, “que eu não sou o autor de Les Bienveillantes. E tampouco o reescrevi.” Ele acrescenta que se contentou em alijar umas 60 páginas do monumental manuscrito do americano e eliminar alguns anglicismos.

A essas refutações de Richard Millet, podem-se opor duas respostas: de um lado, permanecem muitos anglicismos e incorreções lingüísticas no texto do americano. Para alguns, aliás, Millet teria feito melhor trabalhando um pouco mais e cortando não 60, mas 160, ou mesmo 260, ou até 360 páginas do original.

TRADUÇÃO DE CELSO MAURO PACIORNIK
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